quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Carta Íntima


“...Não havia sentido aquela dor antes. Nem tampouco tamanha felicidade. Era o amor que me corroia as ventas, estourava meus ouvidos, e dilacerava o pulsar do tempo. Como um trovão, ouvia sua voz na minha mente. Minhas pernas arqueavam em graus de simultânea harmonia. Não conseguia mover-me. Foi então que a vi partir.”

A noite fria e úmida que descia por detrás daquela grande lua, me fazia lembrar das estrelas que você me mostrou. Enquanto afundávamos nossos pés na areia da praia, o barulho das ondas, e todas as pedras choronas, que nos faziam companhia. Tudo estava em completa sintonia. Mas foi só na fumaça do teu cigarro, aquele de filtro colorido, em que vi seu olhar cintilante, me cortar a alma.

Talvez eu não soubesse de quão longe estaria da felicidade plena. E ao mesmo tempo, a vivia intensamente. Era uma vida paradoxal que eu tinha com você a meu lado. Festas internas e lágrimas em meu rosto. Nossas almas bailavam cosmicamente, e a sensação de borbulhas de champanhe na garganta... Inesquecível.

Lembro-me bem, de seus cabelos vermelhos sob o sol de abril. Do vento suave que tocava nossos corpos, e de como você me abraçava forte debaixo da figueira. Os campos de girassóis a perder de vista, e a flor do campo em sua orelha, mais belo que um retrato de Monet.

Se quiseres voltar meu amor, lembre-se sempre de que mudei de cenário. Hoje a fazenda ficou nas nossas lembranças. Assim como o sentimento que guardamos na velha caixa do porão. O que vejo da minha janela são grandes blocos acinzentados, e não mais o gramado verde, que trazia brisa do mar. O barulho não é mais de pássaros, agora são sirenes e buzinas. Talvez o sonho tenha mesmo acabado. Acho melhor você ficar onde estás. No bolso do teu vestidinho indiano, guardastes um retrato meu, eu sei. Mas aquele homem ficou no passado, junto com seu amor. E agora, nada mais nos resta, além de um Cabernet falsificado, e um cigarro comprado no posto da esquina.

Apareça em casa minha quando puder. Talvez você ainda se interesse em ouvir os vinis da Janis. Mas a macarronada vou deixar pra outro dia. Um pretexto de te ter por perto, pelo menos por mais vinte minutos.

Do (que um dia foi) seu,

L.H.


º° Bibian °º

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Roma


Noites de frio no terraço do meu prédio. Lá em baixo as cores dos carros que correm num frenesi como se os minutos fossem dilacerar o peito. Me pego outra vez pensando em nossos momentos, e como era bom a vista aqui do alto ao seu lado. Talvez agora, onde você esteja, tenha outra paisagem, outro cheiro, outra brisa no rosto e, outra cabeça em seu ombro.
Mas sempre haverá o mesmo coração saltitante, quando você chega com aquele pote de sorvete e o nosso filme favorito. Sempre haverá seu lugar do lado direito da cama, me puxando o coberto madrugada a fora. Haverá as tardes distantes, onde só o telefone aliviava nossa saudade. E ainda assim, por mais que tudo mude de lugar, haverá você e eu, num lugar distante, chamado memória.
Por que sei que não adianta, servir duas taças de vinho, nem acender a lareira. Não adianta mais juntar os quebra-cabeças que compramos no ultimo Natal, por que eu sei que a Torre já foi destruída. Os sonhos que fizemos já foram abalados, e todas as horas em que me pego pensando em você, eu sei, sempre será passado.
Envolvo-me no meu abraço, e fecho os olhos tentando lembrar-me pela ultima vez de todas as coisas boas, como um ritual. Quem sabe assim, se eu der fim nisso tudo, eu não mude e não me cure de você? Mas eu não sei sequer, se quero me curar se, saberei continuar sem nossas lembranças, tão minhas agora.
Volto a casa, sento-me no sofá de canto, do mesmo jeito que você costumava fazer. Seguro o telefone nas mãos, e lá dentro do peito, aquela vontade, quase prece, de que você me ligue, pergunte como estou. Ou apenas diga que foi engano. Faço de sua voz meu porto-seguro, e mesmo sabendo que é devaneio meu esperar por estes momentos, eu continuo assim, seguindo contra a maré.
As horas vão se passando, o barulho dos carros já diminuiu, e o sol vai despontando por detrás dos outros prédios. Mais uma noite passei sonhando acordada. Mais uma noite passei pensando em você. Agora o café forte e amargo me liberta desse transe, me trás pra vida real. O dia será longo, e a cada minuto em que puder minha mente irá se lembrar de você, fazendo meu coração bater mais rápido e apertado. Acho que ainda amo você.

º° Bibiann °º


domingo, 21 de outubro de 2007

Suspiro


Gosto amargo na boca. Mais uma noite perdida em seu sofá de couro branco. Manchas de vinho tinto e restos de comida na mesinha central. Fôlego de fumante é o terror das manhãs de domingo. Precisa de água.

Abre a geladeira, e tem a impressão de que todo mundo cabe em muito gelo e nada de água! Uísque barato de beira de estrada. Mas a dor de cabeça e o enjôo... Não, estava mesmo só e naquela cidade, ninguém poderia interceder.

Tinha apenas vinte anos, mas já penava sob as dores de um mal de amor. Se é que tudo aquilo fora amor de verdade. Não sabia, pois o futuro ainda não trouxe as respostas. Queria apenas cessar a tosse, acender um natural e, observar a fumaça sumir por detrás das cortinas azuis de algodão.

Calor que fervia os miolos, fazendo coágulos de sangue por debaixo de sua pele. Mais uma vez pensou em água, queria um banho. Chuveiro frio, forte e tempo vagaroso. Quase uma bruma... Fechou os olhos e ouviu a porta bater na sala.

Aquela música dos anos setenta, justamente da época em que não se lembrava, pois não havia sequer nascido. O balanço da canção trazia uma saudade do que não se conhecia, do que não existia. E todo espaço fora invadido melancolicamente por aquelas notas sofridas e boas de ouvir.

Fechou o chuveiro, enrolou-se na toalha branca. Pensou que poderia passar os seus últimos dias de vida dentro daquele banheiro frio. Em posição fetal, no chão, como criança que perdeu o rumo do nada, sentia que tudo estava acabado. Ouviu a voz chamar seu nome, tinha pressa. Levantou-se devagar, como quem sentia dores na alma. Pensou talvez que poderia segurar no pulmão o passar dos minutos. Inútil tentativa.

A voz agora gritava nervosa. E dizia verdades de quem também sofria, por erros alheios e irrevogáveis. Estava mesmo tudo findado. Lágrimas não adiantavam. As mãos fugiam, não mais acalmavam. Os braços agitados não cabiam mais no seu abraço. Dor e medo.

Bateu a porta, não disse adeus. Os passos nas escadas selavam o que a mente há tempos já dava sinal. Precisava sumir fechar-se em sua toca, trancar as portas para o mundo e internalizar tudo o que era essencial. Não chorou, gritou. Não penou, agradeceu. Não sorriu, mas criou a sua liberdade depois de sua intensa reflexão. Rabiscou num papel o endereço, deixou as chaves em cima da mesa e saiu. Para nunca mais voltar para aquela voz.


º° Bibian °º

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Porta-Mangueira


Quando o galo cantou, eram cinco horas da manhã de um sábado. Sábado de carnaval, morro da Mangueira, cidade do Rio de Janeiro. Ela forçou os olhos, sentiu o peso das pálpebras como se houvessem coladas umas nas outras. Esfregou com a ponta dos dedos e bocejou esticando as pernas.

A garoa que caía lá fora, levava lama às ruas de baixo. As pessoas iam subindo devagar, carregando suas fantasias da noite anterior, pulando entre as poças, sorrindo com seus poucos dentes. E da janela ela via também as bandeirolas que dias antes, ajudou a colocar por toda favela.

Lembrou de quando era criança, sonhara um dia ser Porta-Bandeira da escola que a vira nascer. Pensou no quanto seu pai havia trabalhado fazendo bicos como pedreiro, nas casas que ficavam lá em baixo, no asfalto, perto do mar. Tudo era para um dia poder desfilar e mostrar o quanto era talentosa.

Levantou da cama, que ficava num espaço pequeno entre o que chamava de quarto, e que servia também como sala e cozinha. Preparou um café forte, não tinha leite, mas já estava acostumada. Ainda restou um pão do dia anterior, rasgou-o entre os dentes fortes e engoliu junto com o amargo.

O dia já começava a dar suas primeiras cores sob os raios de sol, e sentiu um frio na barriga. Foi então que se deu conta; estava mais perto do que ela imaginava. E agora não sabia lidar com o momento tão esperado.

Varreu a porta de entrada, e botou um disco de samba pra tocar. As crianças corriam entre os becos, subindo e descendo, era festa, era carnaval! Pensou em ir à praia, mas de certo tomaria muito tempo, ela queria sentir cada momento ali, na sua toca. Então fechou-se e lentamente, ensaiou uns passos que iria usar à noite.

E quando percebeu, o samba havia-lhe tomado à alma, e todos os sons eram as batidas do seu coração. Já ouvia os gritos que viam das arquibancadas, e a vibração da bateria. Não queria abrir os olhos, tinha medo de que aquele momento escapasse de sua vida, como um suspiro no fim da tarde.

Chorou, e agradeceu à Iansã por estar firme, representando sua escola, e sua família. Pensou em seu pai, e no quanto ele estaria feliz se estivesse ali. E pensou até que, ele realmente estava; em emoção.

O suor caía-lhe pelo rosto, inundando seu vestido tão brilhante, e foi num estampido que o suor misturou-se com o sangue do seu peito. E a formosura desabou na avenida, sem desmanchar seu sorriso. Ela ajoelhou, abriu os olhos e viu, era mesmo verdade, e estava feliz.

A manchete do jornal no dia seguinte homenageou a mulata formosa, que partiu feliz, como sempre desejou, no meio da Sapucaí. Sua escola não foi campeã, mas certamente, ninguém esqueceria daquela noite estrelada, pois era sábado de carnaval.



º° Bibian °º

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Existe um Lugar


Existe um lugar em que a democracia é falha.

Em que crianças não brincam em condomínios fechados.

Existe um lugar no qual o esgoto ainda corre em céu aberto, os jovens não vão à escola, e os doentes não são igualmente respeitados.

Existe um sistema que desumaniza nossos irmãos de raça.

Que desrespeita as mínimas condições aceitáveis de vida digna.

Existem pessoas que tiram da dor o motivo pra sorrir.

Que convivem com anos de segregação.

Que não conseguem falar, pois não tem voz.

Que não conseguem agir, pois as pernas já estão fracas.

Existem pessoas que não podem reclamar suas insatisfações

Que são tratadas como pequenas marionetes em épocas de eleição

Que não tem respeitados os seus direitos de ser humano.

Que são absurdamente espancados, mutilados e assassinados.

Que são desrespeitados, humilhados e mal pagos.

Existem roncos de fome que são ignorados.

Existem pedidos de ajuda que são negados.

Existem hospitais que assistem a mortes nos corredores.

Existe a fome nesse lugar.

Existe a frustração, o ódio, o rancor...

Existem muitos funerais, muitos abraços e muitas lágrimas.

Muitos velórios, muitos pêsames, e muitos desabrigados.

Existem pessoas que choram por não entender o que fizeram.

Para desmerecer as oportunidades que eles vêem que alguns têm.

Existem pessoas que sofrem com a falta de sentimentos.

Que desconhecem o que é amar, gostar, sorrir.

Que convivem todos os dias com a morte os olhando.

Existem pessoas que não recebem abraços, olhares, atenção.

Que estão acostumadas a um governo hostil...

Se você desconhece esse lugar,

Seja bem vindo, esse é sim o seu Brasil.


Rafael Loiola

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Arsênico Letal


Eu, ser plenamente vencido
Pela sociedade abastada e avarenta,
Vivo pelos becos escondido,

Não mais tendo a proteção da placenta.

Sou um corpo emurchecido
E uma massa encefálica degenerada.
Aquele serve ao espírito como abrigo

E esse à alma por morada.

A sorte - um felino finado; E os vícios...
A incontrolável delinqüência,
Deixam na epiderme indícios

Que desmentem a minha falsa aparência.


Um lutulento lupanar é o caminho
Percorrido pelo meu cadáver convulso.

Como um estranho pássaro no ninho
Constantemente me auto-expulso.


Potencialíssimo esquizofrênico:
Quero das turbas me afastar;

Propenso a ingerir arsênico:

Posso isolado, lentamente finar.


-|- Leo Rosário -|-


De todo carinho, respeito e admiração, meu muitíssimo obrigado.
Bibian.

domingo, 23 de setembro de 2007

Inspira-ação


No momento em que a inspiração foge, é preciso respirar fundo. Tão fundo a ponto de sentir o pesar dos dias. Por mais que a cada hora, cada segundo a mais, só aumente a aflição.

Então não há o que fazer a não ser esperar. Esperar a água ferver enquanto você decide entre café ou chá. Esperar o fósforo queimar até o fim, antes de acender o ultimo incenso, e o primeiro cigarro. Esperar pela morte do amor, sentenciada pelo outro, a quem você menos espera. E de quem você mais precisa.

Pensar num tema é algo paradoxal. Pode-se falar de dor, da vida, de amor e de alegria. Mas sempre se escolhe falar das alegrias que a vida trás depois das dores de amor. Torna-se um alienígena dentro dos seus próprios conflitos.

Afinal, não seriam conflitos se fossem fáceis, seus temores. Mas ainda assim, é preciso insistir na mentira de um final feliz. Porque do homem nada resta se lhes retirassem todos os sonhos. Inclusive os seus piores pesadelos.


º° Bibian °º