sábado, 18 de agosto de 2007

O Guerreiro Secreto


Foi como sentir a força das ondas, ou como um soco no estômago. Aquela voz, e toda sua presença de espírito, dominavam o ambiente. Soavam como lampejos de trovão, e como o barulho que faz a chuva ao cair nas telhas de barro. Todo o poder que rugia de sua fala, apoderando-se da atenção dos ouvintes, aquele interlocutor austero. Dono e senhor de si. Inflava o peito para gargalhar. E seu riso inundava os ouvidos e sacudiam as paredes do vento.

Todo ser vivo podia sentir a vibração de sua energia. Com pavor de sua sagacidade, as pessoas recolhiam-se entre seus dentes rijos e amarelados. Esperando que a tempestade se pronunciasse, e decretasse qual seria o rumo a seguir. Como uma ordem aos seus súditos, era o imperador presente em seu olhar misterioso.

Por mais frio que fosse, aqueles olhos meigos rasgavam a alma de quem os cruzasse, revirando seus pensamentos e, confundindo-lhes as certezas. Somente ele poderia prever o que os outros escondiam por debaixo de suas máscaras. E somente ele as revelava, toda sujeira debaixo de suas unhas. Sem pudor ou pena, entre um sorriso e outro.

E todo aquele barulho que vinha de sua garganta, era como um túnel escuro e frio, mas que certamente, haveria de encontrar o clarão acolhedor do seu suspiro final. Ainda que sua alma estivesse destinada ao pior dos sentimentos, havia nele uma ternura e um brilho suave. Tão qual a pena mais alva das aves mais raras e distantes. Era como a neve em noites frias. Era como a brisa em manhãs de verão.

Aparentemente cruel, definitivamente humano. Contornava o humor com o medo, dava-lhes o poder de escolha. E tinha a certeza de que todos o escolheria. Era sábio como os antigos, e esperto como o mais hábil viajante. Poderia ser ligeiro em suas decisões, mas era profundo e liderava com avidez suas escolhas por outra tomadas.

Do que ninguém poderá esquecer, certamente, é de sua lealdade àquilo que julga como certo, e de todo modo é, pois assim ele reverte. Transforma e verbaliza. Argumenta em sua oratória, faz com que suas afirmações sejam as mais cabíveis e vigentes. Pois ele sabe que, naquele mundo onde somente ele reina com o poder e a vitória, outro não poderá tomar seu lugar.

Medo sente, pois é mortal, mas não titubeia quando tende lançar-se a cargo de suas batalhas no dia-a-dia. E enfrenta seus adversários com a mesma força com que defende suas certezas e busca saciar dúvidas. Tem em sua volta o mundo inteiro. E por ele, outro mundo a admirá-lo. É inteiramente livre, e sua liberdade o faz brilhar. Filho da Lua, do Fogo e do Ar.


º° Bibian °º


Em homenagem ao amigo Leo Rosário. Parabéns!




terça-feira, 14 de agosto de 2007

Fogaréu


Ela acorda sempre antes do sol. Em sua casa de taipa sem nenhum conforto, longe da água encanada, da luz elétrica e de toda tecnologia da vida moderna, essa Marizinha, que qualquer um encontra no sertão, vive sua vida perto dos bichos e da seca.

Entre seus filhos e a fome, seus sonhos são apenas de sobreviver o máximo possível. Nunca foi à escola, assim também como não irão suas meninas, seu marido e seu futuro. Tens nas mãos calos da roça, dores na alma, e a certeza de que mesmo simples, sua vida é exatamente o necessário para poder descrever o tamanho de suas batalhas.

Andar por léguas até o açude, trazer aquela água salobra, e cozinhar os poucos grãos que a terra lhe deu. Quando os têm. Se não, sobra-lhe a palma de cacto, depois de tirar os espinhos e esquentar bem no seu fogaréu de lenha.

Nos dias em que pode passear, vai até a vila, conversa de comadre entre as vizinhas de estrada. E sente que tudo aquilo é seu mundo. Nada além do que a sorte pode trazer. Ela vive assim, por entre as dores do homem, no peso de ser mulher.

Por tudo o que passou, seus partos, seu sangue derramado entre a caatinga, a Mariazinha pode sorrir quando ouve as modas de viola, e o barulho de chuva que cai de tempos em tempos. Provendo o de comer, nem que seja por uns dias. E na missa de domingo, onde deposita sua fé, pede ao padroeiro que lhe conforte a alma, já que o corpo pesa nos seus trinta e cinco anos. Sente-se velha e cansada.

Quando era criança, sonhava em ser professora, e poder ensinar às outras crianças como o mundo era grande e ia além das cercas que dividiam as grandes fazendas. Sua mãe trabalhava em uma delas. E ela via todas as noites suas lágrimas. Promessas de que tudo um dia ia mudar. E mudou.

Agora ela quem arava a terra, enquanto seu marido moia a mandioca que dava no chão rachado, regado a muito suor. Todos os dias sentia o medo da morte, quando via as carrancas dos bois na beira da estrada. Era como se fosse um deles. Estava sempre a espera de um pássaro preto, para rançar-lhe o coração. E com ele todos aqueles sonhos de felicidade.

Por mais que tentasse, a Mariazinha não sonhava a noite. O corpo latejava as agonias do seu pesar. Arrastava-se por entre os dias, com seu sorriso fraco, sua anemia e palidez, embora sempre tivessem um conselho bom para dar aos mais sofridos. Haveria de haver alguém pior do que ela no mundo. E isso a consolava.

Fizera uma promessa de vida. Ainda que custasse sua alma. Entre o batuque dos Santos, ela girava na roda e dizia para si mesma que seria forte, que permaneceria viva. Para um dia poder contar sua história. Mas não havia história alguma. Nunca dali ela tinha saído. Se não, em seu pensamento.

E cada dia era como um dia qualquer. Era acordar com o cantar do galo, andar até o açude, mas açude já não havia. A seca levara tudo. Levara também a Mariazinha.


º° Bibian °º



Fotografia por: leo rosario

Dicas de Como Ser eu Mesma


Primeiro você nasce. Assim, numa cidadezinha distante, no meio do sertão. Entre pés de cacau e moenda de farinha. Depois tua mãe te larga, nos braços da patroa branca. Como era antigamente, com seus antepassados.

Daí então você cresce rica, com conforto e carinhos. Deixando as outras crianças brancas cheias de inveja e desprezo. Passa a entender que o dinheiro compra os “amigos” e revela suas intenções.

Mais tarde, quando já mocinha, você estuda nos melhores colégios da capital. Freqüenta as melhores lojas, os melhores restaurantes, e sua vida que, poderia ter sido na roça, colhendo cacau e vendendo farinha, transforma-se numa vida cortez de princesa negra. Que nem mesmo as rainhas africanas poderiam dar às suas filhas.

Seus pais se orgulham do seu gosto pelas artes. Na sua classe, é a primeira a ler, a criar histórias e contar com simplicidade, suas férias em lugares distantes. Tens o dom da palavra e, sabe encantar com o sorriso de menina moça.

Os rapazes que se aproximam, conhecem a bravura de uma menina mimada, cheia de vontade, que gosta de chamar atenção. Brinca de bola, anda com os pés no chão, mas sabe seduzir desde menina. Assim, consegue roubar o beijo do garoto mais cobiçado da rua.

Quando termina os estudos normais, você decide virar hippie. Usa saias longas, fala como os filósofos que costuma ler, e, para sua família, é tudo tão encantador, que passam-se os anos e a menina continua sem saber “o que vai ser quando crescer”.

Numa tarde, um vizinho seu adoece, e ao hospital, você envia uma carta desejando força ao amigo. Ele responde feliz, dizendo o bem que aquelas palavras lhe causaram, e indicando a profissão das letras para menina peralta de quase vinte anos.

Decide-se ser jornalista, empenha-se para isso, abandona os incensos e retoma aos livros. Dedicada e inteligente, prevê um futuro brilhante, viajando pelo país, atrás de boas histórias para contar. Seu pai, mais uma vez, enche-se de orgulho de sua pérola negra.

Na faculdade, conhece um outro mundo. Cheio de promessas razoáveis, pessoas diferentes e muito além disso, conhece as linguagens da alma. Vídeos, fotos, letras, sons. Tudo te encanta e revela. Agora você está perdida entre tantos desejos, tantos caminhos. Já não sabes mais pra onde ir. Quer abraçar o mundo todo, e morrer em um pedacinho, com seu sorriso na boca.

Foi numa tarde de verão, em que você decidiu não querer mais nada. Apenas que o tempo parasse e congelasse aquele momento. O barulho dos carros rugia seus ouvidos, as cores, as luzes e as pessoas. Tudo girava ao seu redor.

Correu para pista larga, onde os carros bruscamente freavam. Morreu no asfalto quente, debaixo de um caminhão. E quando sentiu como nos filmes, a câmera rodar, o zoom - in dá ré e vem aquela musica triste no fundo. Tudo fica branco, apenas o estrondo. A próxima cena é você, com sua caneca verde, óculos na testa e uma tela de computador bem na frente. Angustiada com a fumaça do cigarro, enquanto a perna direita está em cima da cadeira, como costumava sentar desde menina.

Documento salvo, agora é mandar para o revisor. Mais uma noite longa entre conhaque, cigarro e Janis Joplin. Que tal ligar para aquele ex-namorado?


º° Bibian °º



Fotografia por: Bibian

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Nó na garganta.


Vivemos época cada vez mais desumana. Nossos irmãos esqueceram-se que a sua inteligência deveria, em tese, humanizar cada vez mais nossas sociedades, tornando-nos aceitáveis entre nós. Os sentimentos, dos quais tanto nos vangloriamos, estão tornando-se cada vez mais obsoletos, e as pessoas só buscam o vazio. Apesar do nosso cérebro desenvolvido, agimos em desacordo quando nos tornamos tão insensatos. Destruímos nosso ambiente em prol do acumulo de capitais, não tendo em mente que nosso irmão tão próximo passa fome.
Estamos nos deixando levar cada vez mais pelo consumismo e pela vaidade, deixando de escutar nossos sábios idosos e escutando cada vez mais a essa mídia aprisionante e parcial. Perdemos nossa personalidade, deixando que a padronização e a igualdade passem a ser cada vez mais comuns e a não absorvição das mesmas resulte em exclusão e desigualdade. Reclamamos da violência, mas formamos governos que tem suas vistas voltadas apenas ao seleto grupo das elites e esquecemos de dar condições iguais de vida. Questionamos a sociedade, mas continuamos cúmplices dessa cultura altamente egoísta. Cometemos o crime de saber, mas aceitar. Os que não tem condições continuam sendo vistos apenas como marionetes políticas que servem de apoio à personalidades corruptas que terminam de destruir qualquer possibilidade de melhoria do país. Somos diariamente assaltados por um igual, assassinados pelo nosso semelhante que já não vê a esperança de melhoria da sua vida.
Somos cobrados a ser iguais, a almejar as mesmas coisas (embora por caminhos diferentes), a ter as mesmas responsabilidades que só terminam de colocar em xeque mais algumas de nossas ideologias igualitárias. Nossa vida tão superlotada de deveres nos esfria a ponto de não termos o sentimento de ajuda ao nosso próximo, por pura ganância. Por isso, precisamos de pequenas desculpas para nosso comportamento egoísta, que visam convencer mais a nós mesmos do que aos nossos interlocutores. Somos todos formadores de uma sociedade limitada, por isso cada bala de um crime é também culpa nossa. Não mais valorizamos os verdadeiros sentimentos, e somos acometidos pelo medo de não ter a responsabilidade de plantar uma relação. Estamos acostumados a maltratar, a não condizer com nossa ilimitada condição de fazer o bem. Estamos mais agressivos, mais alcoólatras, mais fumantes e entorpecidos. Estamos cada vez mais ocultos, surreais, formadores de utopias inalcançáveis. Temos a felicidade, mas viramos as costas, deixando-a partir com seu caminho retilíneo.
Esquecemos que dizer o que sentimos é importante. Esquecemos que não falar também machuca. Não temos mais uma palavra de conforto para aquele que está dormindo na rua e rezando para que alguém tenha caridade bastante para dar-lhe um prato de sopa. Esquecemos que eles também são seres humanos e que também merecem um olhar igual. Esquecemos que eles também sentem dores, que também sentem fome e que não nos custará nada mais que um pouco de tempo para confortar algumas carências. Esquecemos de valorizar quando uma pessoa gosta muito de nós, temos medo de assumir posturas de responsabilidade por um sentimento. Mas é assim, somos humanos, imperfeitos e altamente egoístas. Desejar apenas que isso mude não basta, gritar contra isso apenas não ajudará na mudança, pois uma palavra que não é seguida de uma ação é só mais uma palavra.
Rafael Loiola.