quarta-feira, 4 de julho de 2007

Liberdade!

- Entra. Não repara a bagunça, mas com toda a confusão não tive tempo de arrumar. Não, não chora não. Respira fundo, e espera que tudo há de se consertar.
O chão estava imundo. Centenas de roupas espalhadas pelos cantos. Nas paredes as marcas da arte infantil ainda eram evidentes. Os poucos móveis que preenchiam o casebre estavam completamente empoeirados.
E assim ela entrou naquele barraco, do qual jamais sairia. Vinha da casa dos pais, tão pobres quanto o rapaz. Menino direito, trabalhador, mas que não descendia de nenhuma condição econômica. Nascera em família humilde, assim como ela. Tinha um trabalho quase escravo numa empresa de transportes públicos. Sim, o nosso José era um simples segurança, que não precisava de mais do que seus trezentos e tantos por mês e de seu trinta e oito para viver bem, na sua concepção. Mas agora as coisas mudariam. Esta mulher (a qual chamaremos de Maria) escrevia, em sua vida, uma historia muito bruta.
- Maria, senta aí. Temos de conversar um pouco – dizia José tentando, inutilmente, disfarçar sua insegurança.
Maria não conseguia dispor de palavras para formar uma frase. Apenas obedeceu ao rapaz, e sentou-se naquele sofá velho. Queria berrar sua insatisfação. Queria estufar o peito e urrar seu desapontamento. Mas ela não tinha forças nem para levantar a cabeça e mostrar o rosto. Sentia vergonha. Sentia nojo. Não entendia por que, mas ela preferia ter sido morta naquele dia.
- Eu sei que agora você não tem condições, mas amanha nós teremos de ir à delegacia para que você preste uma queixa.
Ela não dizia nada, apenas balançava a cabeça negativamente, entre soluços.
- Mas por que não? A pessoa que fez isso com você merece pagar, Maria!
- Eu já disse que não! – berrou a moça e virou o rosto para o outro lado.
A tragédia que aconteceu com Maria já não deve ser mais nenhum mistério. Sim, ela fora violentada. Mas ela não queria que ninguém pagasse por nada. Ela só desejava esquecer aquele maldito dia. De todas as terríveis coisas que a moça já presenciara, aquela era uma das poucas que ela apagaria de sua vida, se pudesse.
O tempo passava e apagava as marcas da violência que a moça sofrera. Pelo menos aparentemente, ela estava melhorando bastante, mas José não conseguia esquecer sua revolta. Tudo o que ele queria era poder se vingar do desgraçado que fizera aquilo com uma menina como a Maria. Mas a garota se fechara de tal forma que era impossível arrancar dela qualquer informação do agressor. José, já sem paciência, terminava por deixar o assunto e ia fazer alguma outra coisa. Mas cada dia mais, Maria se fechava, falava menos, chorava mais... Ou seja, vivia dando sinais de que precisava de uma ajuda maior.
Mais um dia normal começava. Pelo menos era o que achava José. Levantou para tomar café (já havia se habituado a tomar o bom café que Maria preparava), mas a mesa estava vazia. O rapaz estranhou, mas não tinha tempo para pensar demais. Tinha de se aprontar para ir ao trabalho. E assim foi feito. Banhou-se, vestiu-se e, quando saía de casa, sentiu que se esquecia de alguma coisa. Passou a mão pelo cinto e notou a falta de seu instrumento de trabalho – seu bom e velho trinta e oito. Na mesma hora em que deu falta do objeto, um nome ecoou em sua mente:
- Maria! – berrou ainda em frente à casa.
Mas não havia mais tempo. Enquanto adentrava o barraco aos trotes, José ouviu o barulho de liberdade. Invadiu o quarto às pressas, mas a moça estava estirada no chão, com um buraco no meio da testa. O rapaz ainda ficou alguns minutos olhando a cena, sem querer acreditar, quando viu em cima da cama um papel com apenas duas palavras. Ele pega o papel e seu olhar de horror é notado ao ler a frase: “Meu pai”.


Rafael Loiola

segunda-feira, 2 de julho de 2007

A Paixão e seus segredos


O veneno é letal como bala de tiro. O ciúme mata, fere, e cansa. Todo amor se cansa. A paixão queima, e o amor cansa. Cansa tanto que um dia acaba. Seco e só, assim como começou... Sozinho.

No dia em que ela percebeu seu amor, notou também que não se amava mais. E bebia e fumava. Fumava e bebia como bicho acuado, como quem precisava morrer. E morreria por ele, se assim fosse preciso. “A paixão é um inferno, o amor é o Satanás!” gritava ela aos quatro ventos, pedindo a Deus para que lhe redimisse de seus pecados.

Enquanto ela o amava, ele pensava na sua vida como peça de teatro. Ele era o mamulengo, ela a feiticeira. Haveria de saber quem comandava o picadeiro, teria de pedir-lhes ajuda. Era louco por ela. E ela era louca por ele.

Tentou morrer queimada, tentou cortar os pulsos. Mas a cigana velha, com seus cabelos negros, pele seca e dedos largos, lhe afagou o rosto. Sentenciou seu mal, e disse que tudo seria diferente. Ela precisava ser forte, pois a paixão já havia cessado. Ele voltaria de onde viera. Não houve desespero. O amor era tamanho que ela se conformou.

Trovões e raios cortaram a escuridão e o silêncio da noite anterior. Tambores de negros no terreiro ao lado, arrepiavam-lhe a alma. As vozes em coro. Atabaques, batuques, gritos e fogos. O dia não clareava, e a solidão lhe era perversa. Onde ele estaria, se não nos braços de sua amada?

E foi nessa hora de cólera, que sua voz ecoou por toda sala. Esvaiu-se de lágrimas, e deixou seu corpo cair ao léu. Sentiu-se voando, sorriu. O gosto do amor era amargo como sangue. E então pensou que tudo não passara de um sonho.

Acenderam-se as luzes, o público levantou-se. Era mesmo o fim.

Baseado no filme O Vestido , de Paulo Thiago.




º° Bibian °º

domingo, 1 de julho de 2007

Meus doces vícios.

Mais um trago daquela cachaça de terrível gosto. Descia amarga, levando consigo os sentimentos que eu tentava afogar. Agora as vistas estavam embaçadas. Já não tinha os reflexos de antes, mas não tinha, também, os mesmos sentimentos. Estavam engolidos, afogados, inebriados com este sorriso alcoolizado. Recebia abraços mil, e me sentia um cara de sorte, pois com o efeito, eu já não via o vazio. Uma piada, muitos risos e outra dose quente ardendo garganta abaixo. E cada vez mais a realidade se confundia com todos os meus sonhos. É como se tudo estivesse dando certo, não me recordava nem o porquê da tristeza de outrora.
Outro gole de alegria descia-me a goela, e queimava minhas lágrimas. Uma boa música tocava ao fundo, mas eu não conseguia me focar no som. Via a tristeza longe, muito longe, e agora eu só queria saber daquele momento de liberdade há muito não experimentado. Já não sentia a fome do meu próximo. Já não sentia o frio vácuo em que estava instalado o meu peito. Já não sentia o desapontamento pelos planos incendiados. Um cigarro proibido é aceso. A fumaça me entorpece, e o riso agora é fácil. O gosto ruim da cachaça já não é lembrado, pois aquele cigarro de gosto forte a cobria. O amargo das lágrimas engolidas também é esquecido por hora. Apenas esse riso bom, desses que a gente demora muito pra poder largar, que não vem de forma natural. Esse riso é tão falso quanto essa realidade em que me vejo. O riso toma o lugar da lágrima que deveria estar caindo neste exato momento, mas, com uma teimosia tamanha, não se deixa cair. Outra dose que acompanha mais um cigarro. A essa altura eu já não sinto meu corpo. “Está quase na hora”, penso. Hora de que? De voltar para casa e constatar que a realidade voltou. De deitar no travesseiro e esperar que meus pensamentos me libertem. De sentar e esperar o tempo passar, num passe de mágica e me devolver meu coração sadio.
Mais uma dose vem, mas eu já não sinto mais a vontade de virá-la. Tenho vontade de ir para casa e chorar muito, pois me vem a certeza de que estou me enganando. De que estou me utilizando de fúteis válvulas de escape, que me devolvem toda a minha tristeza assim que se vão com seus efeitos. A contragosto, ainda engulo a dose ardente. As piadas já não fazem mais sentido. Os risos já não vem com freqüência. Estou perdido em minha própria mente, buscando respostas complexas para problemas simples. A vontade de ir embora ainda vinga, mas a coragem para fazê-lo é suprida pela coragem de enfrentar meus problemas. Vou para casa com a mesma tristeza, apenas um pouco tonto, mas com a companhia da mesma solidão que me acompanha esses dias. E me entristeço, pois consigo constatar que hoje eu supri todos os meus vícios, mas nenhum de meus sentimentos.
Agora deito na cama, milhões de pensamentos rodam junto com minha cabeça, e eu ainda tenho tempo pra pensar se é esta mesmo a resposta certa. Mas qual era a resposta?
Ah, complexa demais, não tenho cabeça pra pensar isso agora – é meu ultimo pensamento até que o sono me tome.